Recentemente, foi notícia internacional que a Venezuela revogou sua Lei da Propriedade Industrial, de 1973, restaurando a antiga lei, de 1955, o que representou, na opinião de muitos, um enorme retrocesso no progresso industrial daquele país. Voltou, por exemplo, a proibição de serem concedidas patentes de medicamentos, alimentos e bebidas, o que parece um tanto anacrônico em pleno século XXI. Mais ainda, o presidente Hugo Chavez chegou a afirmar que a propriedade industrial deveria acabar, chocando a maior parte da comunidade que milita nessa área. Automaticamente, a Venezuela se retirou da Convenção de Paris e do Acordo TRIPs, tratados internacionais sobre propriedade intelectual dos quais o Brasil é signatário. Por enquanto.
Desde a introdução do artigo 229-C na Lei da Propriedade Industrial - a Lei nº 9.279, de 1996 - em 2001, o governo brasileiro já vem dando sinais de que pretende limitar cada vez mais o escopo de proteção da propriedade industrial, especialmente no que tange às patentes. Para quem não se recorda, o referido artigo acrescentou aos requisitos de patenteabilidade a anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aos pedidos de patente referentes a produtos e processos farmacêuticos.
Ainda na seara dos medicamentos, também foi notícia não muito tempo atrás que o governo brasileiro ameaçou licenciar compulsoriamente - ou seja "quebrar" - algumas patentes relativas a medicamentos utilizados no tratamento da aids. Não satisfeito com as ameaças, o governo brasileiro determinou a licença compulsória do medicamento Efavirenz. Evidentemente, esses atos também foram alvos de severas críticas por parte da comunidade internacional. Por seu turno, alguns contratos de licença de exploração de patentes também vem sofrendo uma série de intervenções por parte do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) no que se refere ao pagamento dos royalties livremente contratados pelas partes.
Pois bem. Não fossem suficientes essas medidas nos últimos anos, um novo capítulo nessa história foi aberto recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A antiga Lei nº 5.772, de 1971, estabelecia que o prazo de proteção das patentes de invenção seria de 15 anos, durante os quais seus titulares gozariam do privilégio em relação a terceiros. Contudo, essa realidade mudou quando entrou em vigor o Acordo TRIPs, em 1º de janeiro de 1995, que determinava que o prazo mínimo de proteção patentária deveria ser de 20 anos nos países signatários.
Desde a entrada em vigor do Acordo TRIPs, que revogou em parte a Lei nº 5.772, todas as patentes necessariamente deveriam ter prazo de validade de pelo menos 20 anos. A dúvida era se isso valeria para as patentes já concedidas - originalmente válidas por 15 anos - ou apenas para os pedidos de patente ainda em curso em 1º de janeiro de 1995. Questionado sobre isso, desde sempre o INPI se manifestou contrariamente à extensão dos prazos de validade das patentes, de forma que muitas empresas decidiram levar a matéria à apreciação do Poder Judiciário.
Até pouco tempo atrás, a Justiça Federal do Rio de Janeiro, tanto em primeira como em segunda instância, concordava com as titulares das patentes e vinha determinando a extensão dos prazos para 20 anos. Há diversas decisões nesse sentido. Entretanto, devido à alteração da composição dos órgãos julgadores da Justiça federal e à notória pressão feita pelo INPI - leia-se governo federal -, esse entendimento veio aos poucos sendo modificado, primeiro, e curiosamente, em segunda instância, e posteriormente em primeira instância. As titulares das patentes, não obstante, continuavam com o suporte do STJ, que chegou a proferir decisões favoráveis a elas.
Eis que, em março deste ano, a terceira turma do STJ se alinhou ao governo e decidiu alterar seu entendimento - pacífico até então -, e, pela primeira vez, negou a extensão do prazo de validade de uma patente nas circunstâncias explicitadas acima. Contrariamente ao que vinha sendo decidido, os ministros da terceira turma do STJ - também diferentes daqueles que haviam examinado essa questão anteriormente - se manifestaram contrariamente à extensão da proteção patentária, sob o argumento de que o Acordo TRIPs não poderia ser aplicado automaticamente, havendo necessidade de uma legislação complementar para introduzi-lo no ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, a turma entendeu que o Acordo TRIPs somente entrou em vigor no Brasil em 1º de janeiro de 2000, e não em 1º de janeiro de 1995, como vinha sendo aceito anteriormente.
Certamente a titular da patente envolvida nessa decisão do STJ recorrerá e tentará levar o assunto ao Supremo Tribunal Federal (STF), considerando que a proteção da propriedade industrial também é uma norma constitucional, prevista no inciso XXIX do artigo 5º da Constituição Federal. Aguardamos ansiosamente pelos próximos capítulos dessa novela e esperamos que o governo brasileiro entenda, ao contrário da Venezuela, que o desenvolvimento tecnológico do país passa necessariamente pela proteção da propriedade intelectual, nacional e internacional, sendo que as medidas que vêm sendo tomadas, na realidade, só afastam cada vez mais qualquer tipo de investimento no país, o que vai de encontro com o crescimento tecnológico pretendido pelo próprio governo.
Valor Econômico
Autores: Guilherme de Mattos Abrantes e Igor Simões
Guilherme de Mattos Abrantes e Igor Simões são, respectivamente, advogado e agente da propriedade industrial do escritório Daniel Advogados
Nenhum comentário:
Postar um comentário