O negócio de reprodução humana assistida, com técnicas das mais avançadas, expande-se rapidamente no Brasil e já movimenta R$ 300 milhões por ano.
Em uma consulta de rotina, a paciente é orientada pelo ginecologista a iniciar mamografias periódicas, indicadas a partir dos 35 anos. O médico aproveita para perguntar se a mulher, que ainda não tem filhos, já congelou os seus óvulos. Diante da negativa, recomenda o procedimento com urgência, caso tenha planos de maternidade.
Na cena descrita acima, apenas a orientação para o exame de mamografia é praxe atualmente. O aconselhamento sobre congelamento de óvulos no consultório do ginecologista geral, como rotina, representa a nova fronteira a ser ultrapassada pela indústria da reprodução assistida, que vê no aprimoramento da técnica uma forma efetiva de melhorar seus percentuais de sucesso em tratamentos de infertilidade - além de um novo filão de negócios. Se até os 35 anos os índices de gravidez obtidos pelas clínicas são superiores a 50%, após essa idade as chances despencam, por causa da qualidade dos óvulos.
Mesmo sem grandes descobertas ou saltos tecnológicos nos últimos anos - antes da vitrificação de óvulos, a última novidade havia sido a ICSI (injeção intracitoplasmática de espermatozóides), em 1992 -, a medicina reprodutiva vem atraindo cada vez mais casais no Brasil. Já existem pelo menos 120 clínicas especializadas no país, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que monitora as inspeções feitas nos laboratórios. O crescimento do mercado aponta para a realização, este ano, de 20 mil ciclos de fertilização, como são chamadas as tentativas de gravidez, contra 12 mil em 2004. Como um ciclo, incluindo medicamentos, custa em média R$ 15 mil, o negócio da reprodução humana assistida pode ser estimado em R$ 300 milhões ao ano.
O congelamento de óvulos é ainda insignificante dentro desse mercado, embora tenha se tornado assunto nacional ao ser abordado no horário nobre da TV. Na novela "Caminho das Índias", a personagem vivida por Ciça Guimarães defende a prática, adotada por ela própria. Na vida real, a atriz americana Jennifer Aniston também fez o congelamento, antes de completar 40 anos. Embora a propaganda espontânea ajude, os especialistas acreditam que o boom de mulheres solteiras - ou casadas com planos adiados de maternidade - nas clínicas só acontecerá quando a técnica for divulgada pelos ginecologistas. Esses especialistas já começam a ser convidados para palestras e reuniões sobre o assunto.
Ações de "marketing médico" costumam ter efeitos no longo prazo, e o alto preço do tratamento necessário para o congelamento - entre R$ 5 mil e R$ 7 mil - deve inibir mulheres a tomarem uma decisão ainda considerada extrema. Nada que preocupe, porém, clínicas e centros de reprodução, às voltas com o crescimento de seu mercado principal, o de casais inférteis. Estudos internacionais mostram que infertilidade é mais uma ocorrência típica da modernidade, pois aumenta em função de fatores ambientais, como poluição, e estilo de vida. Em média, 10% dos casais em idade fértil (16 aos 38 anos) sofrem dessa incapacidade no mundo inteiro, mas o percentual está crescendo. Para agravar a situação, as mulheres tendem a adiar a decisão de ter filhos, por que preferem trabalhar. A consequência pode ser vista nas salas de espera das clínicas, abarrotadas de casais ansiosos por resultados rápidos.
É na primeira consulta de uma clínica, diante de um casal cheio de expectativas, que o especialista pode indicar o caminho de uma fertilização in vitro, com a necessidade de alguns poucos exames prévios. A "cultura da proveta", porém, é criticada por médicos que defendem processos mais demorados de investigação da infertilidade, tanto no homem como na mulher, assim como procedimentos mais próximos do ciclo natural da reprodução, como a indução da ovulação e a inseminação intra-uterina. "Na década de 1980 criou-se uma cultura imediatista no país, por influência da indústria farmacêutica e interesse de médicos que faziam o marketing da fertilização", acusa Jorge Hallak, coordenador técnico-científico do Núcleo de Pensamento Jurídico em Reprodução Humana e chefe do laboratório de andrologia da Faculdade de Medicina da USP. "Essa cultura se perpetuou e hoje é comum não se fazer o diagnóstico das causas da infertilidade."
Hallak não cita o nome do médico Roger Abdelmassih, indiciado no mês passado por estupro e atentado ao pudor, mas é sabido que a cultura em torno da medicina reprodutiva no Brasil formou-se a partir do sucesso de sua clínica, frequentada por casais famosos. Na última década, no entanto, antes que o especialista enfrentasse na Justiça as denúncias feitas por pacientes, a clínica com o nome de Abdelmassih já enfrentava concorrentes de peso, não só em São Paulo como nas capitais do país, que passaram a ter centros de reprodução de ponta para atender casais que antes viajavam em busca de tratamento.
Uma das clínicas que vêm ampliando suas atividades, também visando pacientes de outros estados, é a Huntington, que atendeu 2.200 casos de infertilidade no ano passado, 20% mais do que em 2007. "O mercado ainda é subaproveitado", diz o diretor Eduardo Motta, calculando que só no estado de São Paulo devem existir 400 mil casais inférteis, número estimado a partir das estatísticas internacionais. Apesar da disseminação das técnicas, que aumentou a concorrência entre clínicas, o preço dos tratamentos não vem caindo de forma significativa, reconhece Motta. "A procura cresce por que o tratamento ficou mais conhecido e mais disponível."
Motta diz que a Huntington já é a maior clínica do Brasil, graças à boa reputação e à estratégia de abrir unidades satélites para atender casos de menor complexidade. Hoje, além da matriz no bairro do Ibirapuera, na capital paulista, a empresa tem instalações no Hospital Santa Joana, nos bairros de Santana e Tatuapé e no município vizinho de Santo André. A estratégia de crescimento fora do estado passa por parcerias com médicos locais, experiência que não seguiu adiante em Vitória e Curitiba, mas que deu certo no Rio de Janeiro, onde já existem duas clínicas afiliadas.
Outra clínica com ambiciosos planos de expansão é a Mater, de São Paulo, que depois de uma filial em São José dos Campos (SP) está construindo a primeira clínica de reprodução humana de Angola. A ideia surgiu a partir da observação dos sócios da Mater de que os angolanos lideravam o "turismo reprodutivo" no Brasil, em que casais estrangeiros desembarcam em busca de tratamento mais barato e com o mesmo reconhecimento técnico da Europa e dos Estados Unidos. "Está surgindo uma classe média importante em Angola e o tratamento ainda não existe por lá. Fizemos uma parceria com um investidor local e estamos montando um pequeno hospital, com um centro de reprodução completo", conta Cristiano Busso, especialista em reprodução e sócio da Mater. Em 2010, quando a unidade Angola for inaugurada, dois médicos da equipe estarão permanentemente no país, revezando-se a cada dois meses.
Se as grandes clínicas estão em processo de expansão, as pequenas tendem a se unir, acredita Artur Dzik, diretor do centro de reprodução humana do Hospital Pérola Byington e também médico integrante do Programa Alfa (Aliança de Laboratórios de Fertilização Assistida). O Alfa surgiu em 2003, a partir da união de quatro grandes laboratórios de reprodução (entre eles, o do Hospital Albert Einstein) e já congrega 45 médicos, que se beneficiam da economia de escala. "Temos vantagens nas negociações com os fornecedores, além de um melhor controle de qualidade, o que eleva a taxa de eficiência dos tratamentos", explica Dzik. "A união seria o caminho natural, não fosse a vaidade dos médicos em ter a própria clínica."
A taxa de sucesso, um dos maiores chamarizes das clínicas, é motivo de controvérsia entre os especialistas. Várias clínicas exibem em seus websites índices considerados irreais, ou que se referem ao resultado obtido entre mulheres mais jovens, minoria entre as pacientes. O foco acentuado na taxa de gravidez e bebês nascidos, que agrada os casais mais pragmáticos, é também questionada do ponto de vista ético. Dependendo da linha de conduta do médico, os tratamentos podem ser mais ou menos prolongados, de acordo com a tecnologia aplicada. "Há uso exagerado da micromanipulação (técnica ICSI), por causa da ansiedade de se evitar os 5% dos casos em que a fertilização não ocorre naturalmente", diz Dzik. Em ambas as técnicas, a fertilização acontece in vitro. A diferença está na escolha e na introdução do espermatozóide no óvulo.
"Não vejo superindicação da ICSI", diz Motta, da Huntington. "Os casais que procuram as clínicas querem menos academicismo e mais resultado." Outra questão que divide os especialistas em reprodução é a do diagnóstico genético pré-implantacional, uma biópsia que pode ser feita no embrião antes de sua introdução no útero. Oficialmente, a técnica é recomendada apenas em casos de suspeita de algumas doenças genéticas, pois envolve a manipulação dos embriões. Na prática, é usada para se fazer a seleção do sexo - prática condenada por resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM). Custa, em média, R$ 4 mil. Como a resolução do CFM data de 1992, e já é considerada ultrapassada em relação ao número máximo de embriões a serem implantados (quatro, quantidade exagerada em função da evolução das técnicas de seleção), algumas clínicas questionam as determinações, que não têm efeito de lei.
"Todo dia recebo um e-mail perguntando se fazemos sexagem", diz Busso, da Mater. "É um mercado tentador, mas a nossa postura é de seguir o CFM". Outro título comum na caixa postal do médico costuma ser: "Alugo minha barriga." Trata-se também de prática condenada no Brasil pelo Conselho, que admite apenas a cessão temporária do útero, sem compensação econômica, para parentes até segundo grau. "Temos na clínica uma paciente sem parentes, mas com uma amiga que quer ceder o útero, e enviamos uma consulta ao CFM", conta Busso, entendendo que os e-mails podem significar a disseminação das práticas, já que não existe fiscalização.
A única inspeção, feita pelos serviços de vigilância sanitária estaduais e municipais, e monitorada pela Anvisa, diz respeito às normas de manipulação de células e tecidos nos laboratórios dos centros de reprodução. "Fizemos uma regulamentação sanitária sem o respaldo de uma lei sobre reprodução assistida no país", diz Geni Neumann, gerente de Células, Tecidos e Órgãos da Anvisa. Ela admite que técnicos já detectaram, por exemplo, a prática de sexagem em laboratórios. "A discussão agora tem que ser mais de natureza ética do que sanitária, tem que incluir a sociedade."
O temor de que alguma lei muito restritiva seja aprovada, como sinalizaram projetos já apresentados no Congresso Nacional, acaba por adiar as discussões sobre o assunto nas entidades representativas. Mas o Núcleo de Pensamento Jurídico em Reprodução Humana, que reúne profissionais da USP e do Mackenzie, está elaborando uma proposta de normatização de conduta, segundo Jorge Hallak. "Atualmente, as condutas dependem do caráter ético e moral de cada profissional. Como os pacientes são imediatistas e a mídia só divulga os aspectos tecnológicos, está havendo uma banalização da proveta", diz o médico, que é contra a orientação para mulheres congelarem seus óvulos. "Acho um absurdo."
Para a "indústria" da reprodução assistida, o futuro está vinculado aos avanços tecnológicos, especialmente à vitrificação dos óvulos. "A técnica progrediu de forma espantosa", afirma Dzik. "As mulheres produzem seus melhores óvulos entre 20 e 30 anos, quando muitas vezes nem saíram da casa dos pais. O congelamento é uma forma de preservarem sua fertilidade." Eduardo Motta vai mais longe na empolgação com a tecnologia, e acredita que as clínicas vão atrair, em breve, casais férteis que preferem embriões selecionados em laboratório, livres de novas doenças que serão detectáveis, em vez do método natural de concepção. "As pessoas querem filhos saudáveis."
(Valor Econômico )
Jornalista: Marta Barcellos